Ela disse
Ela disse: Eu não o escolhi, foi a vida que o escolheu para mim. Eu não recebi candidaturas, não conduzi um processo de selecção. A vida pô-lo à minha frente, ele sorria para mim, eu ria-me do que ele dizia e foi isto. Haveria uma centena, talvez um milhar de homens que poderiam ter sorrido para mim, ter-me feito rir. Mas a vida apenas me pôs aquele à frente. E foi isto.
Ela, com um sorriso usualmente classificado como estupido, encolheu as lágrimas com um suspiro e continuou: Ele começou a gritar comigo. Eu chorava. Eu não sabia que poderia não ser assim. Simplesmente não sabia. Quando ele gritava, só chorava. E um dia não conseguia parar de chorar e ele acompanhou os gritos com estaladas. Até eu parecer que parava de chorar. Na verdade, aprendi a chorar para dentro.
Ela, fechando os olhos, mostrou uma cara serena e continuou: Ele nasceu, o meu primeiro filho. Foi bom. Muito bom. Até ele se aperceber dos gritos, dos choros, das estaladas. Quando ele chorava, o meu filho, eu sentia lágrimas de sangue. A dor era maior do que tudo. Do que tudo. E parei de chorar, ensurdeci-me, endureci o meu corpo. Ao meu filho dei todo o meu coração, todo o meu sangue, tudo o que consegui dar.
Ela libertou o choro mas manteve a voz: O meu filho cresceu, está lindo, trata bem a mulher. Trata-a mesmo muito bem. E ela é bonita, vou ter netos fantásticos. Fantásticos. Sonho com isso.
Ela esfregou as costas da mão nos olhos e continuou: Ainda estou com ele. Ele já não me grita. Ou eu já não o ouço, não sei bem. Ele já não me incomoda e o meu filho é lindo, a mulher dele é bem bonita e vou ter netos fantásticos. Sonho com isso. Sabe-me bem sonhar.
Ela terminou: A vida pô-lo à minha frente, foi a vida que o escolheu para mim. Aprendi a viver com ele. Ainda estou a aprender a viver comigo.
NG
3 Comments:
um nó na garganta.
és bruto. não sabias agarrar nas palavras e passá-los em mel antes as pores aqui? achas que eu ando em condições de ler coisas assim? raios te partam que cada vez escreves melhor.
Sabes que por vezes vemos pessoas que nos fazem lembrar certas coisas. E mesmo que essas coisas não se tenham passado comigo (neste caso felizmente), ficam-me agarradas e eu tenho que as libertar. Um blogue também serve para isso.
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