Tozé
Tozé jogava futebol, onde ganhava uns cobres, e cartas, onde os gastava. No futebol, Tozé preenchia a ponta da lança da equipa da sua terra. E, embora pouco esforçado, o seu talento natural para o pontapé na bola permitia-lhe marcar golos com uma frequência desconhecida de qualquer estatístico.
Já as cartas eram jogadas por Tozé numa casa mal afamada, localizada numa terriola fronteiriça. Lá, era constantemente driblado. E tanto nó cego levou, que um dia ficou fora de jogo, com uma dívida alta demais para o seu anão ordenado de jogador amador. O dono da casa apresentou-lhe uma solução simples para saldar o seu débito: não marcar no próximo jogo. No tal próximo jogo - o último do campeonato - a equipa do Tozé iria defrontar a equipa presidida pelo dono da casa de jogo. E nesse jogo, a equipa do Tozé subiria de divisão se ganhasse. Caso contrário, subiria a equipa do seu credor. Foi, assim, com um objectivo secreto e completamente novo para ele, que Tozé entrou no pelado. E conseguiu, até ao intervalo, simular uma completa falta de inspiração. O suplício das palavras de ânimo dos seus colegas e das indicações do seu treinador, quase o fizeram quebrar. Mas a lembrança da dívida focou-o na necessidade de não acertar. E assim continuou a falhar, perante a angustia do povo da sua terra, que enchia os baldios que cercavam o campo de jogo. O esbracejar nervoso do seu treinador acalmou-o: a hora e meia estava a chegar, e o resultado mantinha-se duplamente nulo. De repente, um seu colega, com raiva inversamente proporcional ao talento, conseguiu furar a defesa adversária, entrou na área, e foi rasteirado. Penalty! Tozé sentiu uma forte dor nas costas, devido às palmadas de alegria dos seus colegas, e uma dor ainda mais forte no peito: ele nunca, nunca, tinha falhado um penalty. E toda a gente sabia. E por saberem, já todos, dentro e fora do campo, comemoravam a subida de divisão. Só que Tozé tinha que falhar este e não sabia como. Mas quando colocava a bola no local de partida, e se arrastava para trás, lembrou-se dum treino que o seu irmão mais velho o obrigava a fazer: acertar na barra. Ele passava tardes a tentar acertar na barra, e a levar carolos do irmão sempre que falhava. Agora com confiança, pela primeira vez nessa tarde, e já sem idade para recear os carolos do irmão, correu para a bola, deu-lhe o toque habitual, meio em jeito, meio em força, e a bola, obediente, acertou em cheio na barra, enquanto o guarda-redes, por baixo, se arrumava no chão. Mas a barra, caprichosa, empurrou a bola para baixo, embatendo na cabeça do adormecido guarda-redes, e, dali, para... dentro da baliza.
Tozé está no ar, suportado por dezenas de mãos e braços de gente entusiasmada. Por momentos, ele antecipa as dores resultantes da pancada que irá levar do seu credor. Mas logo as dores são afogadas pelo banho embriagante da multidão, que grita continuamente o seu nome.
NG
Já as cartas eram jogadas por Tozé numa casa mal afamada, localizada numa terriola fronteiriça. Lá, era constantemente driblado. E tanto nó cego levou, que um dia ficou fora de jogo, com uma dívida alta demais para o seu anão ordenado de jogador amador. O dono da casa apresentou-lhe uma solução simples para saldar o seu débito: não marcar no próximo jogo. No tal próximo jogo - o último do campeonato - a equipa do Tozé iria defrontar a equipa presidida pelo dono da casa de jogo. E nesse jogo, a equipa do Tozé subiria de divisão se ganhasse. Caso contrário, subiria a equipa do seu credor. Foi, assim, com um objectivo secreto e completamente novo para ele, que Tozé entrou no pelado. E conseguiu, até ao intervalo, simular uma completa falta de inspiração. O suplício das palavras de ânimo dos seus colegas e das indicações do seu treinador, quase o fizeram quebrar. Mas a lembrança da dívida focou-o na necessidade de não acertar. E assim continuou a falhar, perante a angustia do povo da sua terra, que enchia os baldios que cercavam o campo de jogo. O esbracejar nervoso do seu treinador acalmou-o: a hora e meia estava a chegar, e o resultado mantinha-se duplamente nulo. De repente, um seu colega, com raiva inversamente proporcional ao talento, conseguiu furar a defesa adversária, entrou na área, e foi rasteirado. Penalty! Tozé sentiu uma forte dor nas costas, devido às palmadas de alegria dos seus colegas, e uma dor ainda mais forte no peito: ele nunca, nunca, tinha falhado um penalty. E toda a gente sabia. E por saberem, já todos, dentro e fora do campo, comemoravam a subida de divisão. Só que Tozé tinha que falhar este e não sabia como. Mas quando colocava a bola no local de partida, e se arrastava para trás, lembrou-se dum treino que o seu irmão mais velho o obrigava a fazer: acertar na barra. Ele passava tardes a tentar acertar na barra, e a levar carolos do irmão sempre que falhava. Agora com confiança, pela primeira vez nessa tarde, e já sem idade para recear os carolos do irmão, correu para a bola, deu-lhe o toque habitual, meio em jeito, meio em força, e a bola, obediente, acertou em cheio na barra, enquanto o guarda-redes, por baixo, se arrumava no chão. Mas a barra, caprichosa, empurrou a bola para baixo, embatendo na cabeça do adormecido guarda-redes, e, dali, para... dentro da baliza.
Tozé está no ar, suportado por dezenas de mãos e braços de gente entusiasmada. Por momentos, ele antecipa as dores resultantes da pancada que irá levar do seu credor. Mas logo as dores são afogadas pelo banho embriagante da multidão, que grita continuamente o seu nome.
NG
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