quinta-feira, julho 14, 2005

Apita o Combóio

Quando um dia me sentei no combóio depois da faculdade para ir para casa; quando abri o livro e comecei a ler sentou-se à minha frente - aqueles bancos de 4 - "o mitra". Voz entramelada, mãos nos bolsos, ar seboso e cabelo em desalinho - não por ser fashion mas por não ver água há pelo menos 1 mês. Branco. Que não tinha dinheiro para comer, que dormia num carro, que era toxicodependente, que tinha sida, hepatite, pé de atleta e uma crise de hemorroidal capaz de fazer corar a fístula aberta de um leproso. Resumidamente, que a vida não estava para grandes despesas e a droga para além de ser pouca, era cara. Não levantei os olhos do livro até ouvir a deradeira argumentação: porque eu podia sacar da seringa que tenho aqui no bolso e dar-te com ela e tu ficavas desgraçadinho e se há cena que eu não curto é que não me dêem atenção. Acho que o som do livro a fechar se ouviu por toda a Estação do Cais do Sodré. E como um anjo que desce dos ceús para com a sua espada divina repôr a justiça, o combóio apitou e o mitra, olhando de soslaio para mim, levantou-se e correu porta fora juntando-se ao grupo de 10 ou 15 mitras que corriam pela estação. Até Oeiras não mais abri o livro, não fosse o anjo sair em Caxias ou na Cruz Quebrada e o mitra voltar.